
ELA NÃO SERIA A PRIMEIRA, NEM A ÚLTIMA. Como uma sombra entre as sombras, o Estranho espreitava o casal saindo da taverna. O homem, um mercador viajante, cantava alegremente abraçado à companheira — que sustentava o peso dele com um sorriso ofegante. Aos tropeços, caminharam até o estábulo nos fundos do terreno. Coberto com uma capa escura de couro, o Estranho aguardou que entrassem e se esgueirou atrás deles.
O viajante tentou beijar a mulher enquanto, em um só movimento, ela se esquivou e abaixou as calças dele. Deslizando a mão por baixo da capa, o Estranho sacou seu punhal. Uma lâmina bruta, sem adornos ou enfeites, como ferramenta de trabalho. O corpo estremeceu, pronto para atacar, mas desistiu. Contra um futuro inevitável, o único motivo para hesitar seria o alívio na consciência, mas há tempos perdera qualquer esperança de redenção.
“Você não é mais o mesmo”, sussurrei ao Estranho. Para ele sou apenas uma voz vinda de lugar nenhum. Palavras sopradas em sua consciência. Ele sempre tentou me isolar em um recanto da mente. Uma tentativa inútil. Eu conhecia todos seus pensamentos. Conhecia a dúvida sobre sua alma: interferir no destino ou deixar as coisas serem como são? Por ironia, nunca percebeu que era ele mesmo o destino. Como uma força da natureza, assim como a doença leva à morte, sua existência era um mero instrumento da fatalidade.
Os primeiros gemidos de falso prazer espantaram a hesitação. A Sombra pairava sobre aquela mulher, não havia escolha. Agora convicto em sua tarefa, aproximou-se por de trás do viajante e o acertou na nuca com o cabo do punhal. Devido à força, ou ao álcool, o homem tombou antes de piscar. Ao se virar assustada, a mulher foi agarrada pela garganta. Paralisada, sentiu o punhal atravessar por entre as costelas até perfurar o coração. Ainda a mantendo prensada contra a parede enquanto seu corpo sofria os últimos espasmos de vida e resistência, o Estranho continuava forçando o punhal contra a carne. Próximo demais, sentia o calor do corpo quente da jovem. De cabeça baixa, quase encostada no ombro dela, deixou uma lágrima solitária escorrer lentamente até seu queixo. E aquela foi sua última lágrima.
Pesava cada vez mais o fardo de ceifar vidas inocentes. A obstinação diminuía. Talvez se aproximava a hora de sucumbir diante de toda dor que carregava. É inevitável e aconteceu com todos os outros antes dele. Alguns resistem por mais tempo, por séculos, mas eventualmente sucumbem. Assim como olhar intensamente para as chamas faz os olhos queimarem, muito tempo encarando a morte corrói os alicerces da alma.
Após se afastar e repousar o corpo dela no chão, o Estranho arrancou o punhal ao som do músculo rasgando e encarou o metal escuro, manchado pela culpa, pelo suor e pelo sangue. Então, retirou a capa de couro e enrolou com cuidado junto à lâmina. Antes de sair pegou emprestado algumas moedas de prata do homem desacordado. Guardou a capa em uma bolsa presa ao seu cavalo manco, entrou na Taverna e sentou junto a outros viajantes. Após mais algumas rodadas de bebida ninguém se lembraria do rosto estranho entre eles.
O Sol nasceu como sempre, porém – pela segunda vez na semana –, encontraram uma mulher sem vida e sem qualquer sinal do culpado. Como fogo em palha seca, os boatos se espalharam e logo o pânico foi instaurado: um assassino perambulava pela noite em busca de sangue quente.
Na tentativa de conter os ânimos, o capitão da guarda havia dito aos moradores da pequena vila – um dia antes –, que a primeira morte fora obra de um fugitivo. Não há nada a temer, repetia ele. Porém, no andar de baixo, o dono da taverna o aguardava furioso.
— O que aconteceu? — perguntou o capitão.
— Fui dar comida aos cavalos e achei outra das meninas morta! — O taverneiro gesticulava agitado. — Você tem que fazer alguma coisa!
— Primeiro, baixe o tom de voz. — O capitão deu a volta e sentou-se com os cotovelos apoiados na mesa. — Vou ordenar que o corpo seja removido.
Com punhos e semblante fechados, o taverneiro permaneceu imóvel.
— O senhor pode ir — ordenou o capitão em tom ríspido.
— Espero não ficar sem putas ou o nobre capitão vai dormir com as éguas — resmungou o taverneiro antes de sair batendo a porta.
O capitão corrigiu a postura e enterrou o rosto entre as mãos. Pensou e pensou, refletindo sobre qual dos dois soldados iria enviar. Entre o imbecil que perderia o cadáver pelo caminho e o novato que desmaiaria ao ver o defunto, decidiu ir ele mesmo.
Ao chegar no local e ver o corpo sem vida da mulher, o capitão quase caiu em desespero diante do problema em mãos; em vez disso foi tomado pela excitação de uma caçada. Naquela noite, foi à taverna, sentou-se em um canto, bebeu e observou. A servente informou que seis viajantes haviam chegado nos últimos dias, quatro deles haviam ido embora na manhã do assassinato, restaram dois. Um era grande, de gestos lentos e pesados – poderia imaginá-lo espancando alguém até a morte, mas não matando com uma estocada precisa no coração. Focou as atenções no outro, ordenou ao novato para segui-lo dia e noite. Algo lhe dizia que o culpado não fora embora e atacaria novamente.
O Estranho acordou sofrendo os efeitos da bebedeira, mas confiante de que não seria encontrado. Ocupou a manhã ajudando a servente na limpeza da taverna e, no fim da tarde, se ofereceu para buscar uma panela reformada pelo ferreiro – a infeliz trabalhava sem descanso. Por ironia, o Estranho era o tipo incapaz de ignorar as tribulações alheias, mesmo se esforçando muito para tal.
A noite caiu durante o trajeto, seu destino ficava na outra extremidade da vila, além das últimas casas. Chegando no ferreiro, encontrou a Sombra sobre um menino que mal alcançava sua cintura. O coração estremeceu com ódio de si mesmo.
“É só uma criança.”
“Uma vida como todas as outras”, murmurei em sua mente.
“Cale a boca”, respondeu o Estranho em pensamento. Os dentes rangeram com o maxilar cerrado.
O menino andava descalço e vestia trapos. Pés imundos. Roupas encardidas de carvão – que pareciam terem saído da fornalha. Braços e pernas frágeis como as asas de um passarinho. Ainda assim, carregava um sorriso esperançoso.
— É seu filho? — perguntou ao ferreiro, mesmo imaginando que dificilmente ele trataria o próprio sangue como um animal.
— Sobrinho — o ferreiro respondeu com o máximo de desprezo que poderia carregar em uma só palavra, depois escarrou e cuspiu no chão. — Meu irmão vivia com putas, aí você já sabe. Quando a criança nasceu, matou a vadia e sumiu no mundo.
“Qual a culpa desse menino? Não fez nada além de nascer e sofrer.”
“A mesma culpa do fogo que consome tudo que toca. Ou da tempestade que arrasta qualquer coisa em seu caminho”
O Estranho voltou à taverna com passos pesados. Entendia o que deveria ser feito, mas não aceitava. Cogitou ir embora e abandonar seu fardo, mas nada aguardava lá fora além de sua tarefa maldita. Além disso, a Sombra sobre a alma da criança indicava um fim inevitável. Estava condenada. As consequências de sua omissão seria entregá-la a um destino terrível.
Na noite seguinte, o ferreiro ordenou ao menino que fosse buscar lenha, como de costume. A criança caminhou em direção aos fundos da propriedade, o qual fazia limite com um bosque. Entre as árvores, o Estranho espreitava vestindo a capa de couro escuro esverdeado, que se misturava ao limo e à lama.
“Pensei que fosse desistir”, provoquei.
O Estranho sacou o punhal e aguardou até que o garoto se aproximasse da pilha de lenha. Observou o corpo frágil se esforçando para carregar mais do que deveria. As pernas vacilavam como gravetos sustentando um cavalo. Um alvo fácil, porém a culpa o fez novamente hesitar.
“E se dessa vez for diferente?”
“Você sabe o que vai acontecer”, sussurrei. “Nunca é diferente”.
Esforçou-se para me ignorar, mas seu pensamento repousava nas minhas palavras.
“É a última vez que faço isso, não vou derramar o sangue de mais nenhuma criança”, prometeu a si mesmo. Uma promessa que mudaria o destino do mundo, mas ele só descobriria muitos anos depois.
O Estranho se afastou das sombras, punhal em mãos, e algo o atingiu nas costas. As copas das árvores giraram como borrões turvos. Arfou e guinchou, puxava o ar tentando respirar. A escuridão o abraçou.
Acordou em uma cela onde três homens o observavam. Reconheceu o mais velho, capitão da guarda do vilarejo, que abriu a grade, entrou e lhe acertou um chute na face.
— Você vai apodrecer vivo nessa cela.
Satisfeito, o capitão saiu e o trancou novamente.
Sem palavras, o Estranho ponderou ser inútil explicar porque perseguia a criança. Se estivesse do outro lado daquelas grades, nem ele mesmo acreditaria na natureza oculta de seus atos.
O capitão e um dos guardas deixou a sala, restou apenas o que tinha cara de imbecil.
— Você tem que me soltar… isso é tudo um engano — argumentou o Estranho agarrado à grade.
— Você estava armado, não sou burro — respondeu o soldado apontando para o punhal em cima da mesa.
Insistiu mais algumas vezes, mas o sujeito, como todo estúpido, obedecia a ordens com perfeição. Não restava alternativa: dormiu e aguardou. Por muitas vezes temeu a chegada desse dia; contudo, ali aprisionado nada poderia fazer. Em vez de culpa pelo fracasso, encontrou paz consigo mesmo; o alívio preenchia o peito ao se livrar da responsabilidade de interferir no destino.
Não se surpreendeu quando, no meio da madrugada, os gritos de agonia e o farfalhar do fogo irromperam do lado de fora. O cheiro de carne queimada invadia a cela. Relinchos de cavalos se misturavam ao choro estridente de um recém-nascido. Então uma onda de choque tremeu as paredes, como se algo desabasse. O retrato do inferno parecia pintado nas ruas da vila.
Com uniforme banhado em sangue, o soldado imbecil irrompeu pela porta. As mãos tremiam e os olhos não piscavam, congelados. Pobre coitado.
— Me tira daqui — gritou o Estranho.
De tanto os dedos do guarda tremerem, a chave não encontrava o caminho da fechadura. Enfiando a mão por entre as barras de ferro, o Estranho a tomou e abriu a cela ele mesmo.
— A criança… — o soldado mantinha os olhos fixos fitando o vazio. — O capitão… foi devorado vivo…
O Estranho apanhou seu punhal sobre a mesa e deixou o soldado definhando na loucura.
Lá fora, encontrou a lua cheia e a maldição que deveria evitar. Uma aldeã gritava a poucos metros à sua frente, mas sua voz foi silenciada quando um velho cravou os dentes em sua garganta. A servente da taverna servia-se do taverneiro e, ao seu lado, outra jovem se debruçava sobre o ferreiro. Tripas foram arrancadas pelas mãos nuas e jogadas para o alto junto a sangue e fezes.
Gritos de agonia rasgavam o ar como uma sinfonia desafinada e macabra.
Mais ao longe, o novato arrastava a metade que sobrou do capitão, esmagada, com a cabeça pendendo inerte, os olhos mortos saltando do crânio.
Um cavalo passou correndo em chamas – relinchando de desespero.
“Você sempre soube que terminaria assim”, murmurei.
Sem responder, o Estranho apenas cerrou a mão em seu punhal.
O garoto órfão veio em sua direção, atravessando o mar de confusão e desespero. A pequena silhueta era um contraste grotesco com os horrores ao seu redor. Se aproximou, estendendo a mão, como se convidasse o Estranho para um passeio macabro. O convite foi ignorado. A criança se aproximou mais e, apoiada nas pontas dos pés, sussurrou em seu ouvido:
— Não fique triste, você é só um homem.
Encarando aqueles olhos amaldiçoados, o Estranho agarrou com as duas mãos e sufocou o pequeno corpo até esmorecer. Em nenhum momento o sorriso sádico se desfez da face do menino.
O Estranho chegou ao vilarejo sem esperança, acreditava apenas atrasar a chegada de um fim inevitável. Agora iria embora carregando uma certeza: nasceu condenado a acompanhar aquela maldição. Perseguia a Sombra, sem perceber que era a Sombra que o seguia. Logo começaria tudo de novo, em outro lugar.
Supreendente. Muito bom ☺️
Maravilhoso conto!!