Conto anterior:

ERAM TEMPOS DIFÍCEIS E A FOME BATEU À PORTA DA PEQUENA FAMÍLIA DE CAMPONESES. O pai, um dia, se considerou afortunado pelos dois filhos. Imaginava ambos crescidos: a moça, meiga e caprichosa, ajudaria a mãe nos serviços de casa, e o menino daria um bom caçador – via em seus olhos afiados desde pequeno. Porém, a cada dia ficava mais claro que não sobreviveriam. As lavouras pouco produziram aquele ano e o que trazia com a caça mal alimentava duas bocas. A família era um fardo injusto para carregar sozinho. E a culpa por tal pensamento corroía a alma.
Ao vê-los padecendo dia após dia, esse sentimento cresceu. Várias vezes, em suas incursões – cada vez mais distantes – em busca de alimento, pensou em não retornar. Se a sua boca fosse a única para alimentar, poderia sobreviver. Mas era fraco demais para abandoná-los, fraco demais para dar um fim com as próprias mãos. E homens fracos são presas perfeitas daquilo que ouve o desejo sombrio no coração dos desesperados.
Naquela noite, em uma remota cabana de madeira, havia apenas o prenúncio de morte.
Nunca havia passado tanto tempo sem que me intrometesse nos pensamentos do Estranho. Foi divertido no início, por alguns dias ele realmente acreditou ter se livrado da minha companhia maldita. Mas no fundo, sabia que não poderia se libertar – raras vezes permitiu se iludir com essa ideia. Sabia que sua existência estava entrelaçada à minha.
Em alguns momentos, o silêncio constante soava como demência. Em outros, a solidão dos próprios pensamentos era como uma dose de paz, mesmo passageira.
Naqueles dias, não perseguia a Sombra. Apenas andava a esmo, sem direção. Não era raro encontrar outras maldições, além da sua, assolando este mundo decadente. Um mundo condenado por um povo que acreditou compreender forças primitivas e indomáveis.
Há muitas luas, nuvens de cinzas tomaram os céus. As sombras cobriram o mundo como um manto frio e gelado. Campos antes férteis, padeceram em desolação. Os animais selvagens desapareceram ou migraram em busca do calor cada vez mais escasso. Junto à fome, vem o desespero. Junto ao desespero, vem o antes impensável. Diante da morte, alguns desistem, outros se apegam a qualquer chance, mesmo que o preço seja a condenação da alma.
O Estranho nunca se enxergou como um herói, porém acreditava que algo de bom poderia resultar de sua existência. Naquela manhã, ao entrar na remota cabana de madeira, não esperava encontrar ninguém para salvar. E não encontrou.
Cheirando a sangue misturado a mofo e amônia, o ar estagnado do interior invadiu suas narinas. O Estranho cuspiu no chão tentando se desfazer do sabor rançoso que tomou o paladar. Segundo boatos, uma fera havia tomado a região como morada. Mas sua intuição era apurada. Raramente se enganava, tinha um faro formidável para encontrar coisas que ninguém mais gostaria de encontrar. E sua intuição lhe dizia para verificar a história com os próprios olhos. Ao observar o lar abandonado, confirmou não se tratar de algum animal selvagem. De forma grotesca, os restos da família de camponeses estavam espalhados por toda parte.
“Nenhum animal faria isso”, sussurrei em seu ouvido, quebrando o silêncio de dias. Surpreso, sua única reação foi fechar os olhos, como se procurasse algo escondido em sua consciência. Ou tentasse esconder.
O Estranho atravessou o único cômodo, passou pelo fogão a lenha e por uma mesa de madeira – cuja superfície fora ilustrada com uma rosa branca. Seguiu até o canto nos fundos onde – até dias antes – o casal com os dois filhos dormiam amontoados. Tripas e nacos de carne ressecados se espalhavam sobre a cama maior, um emaranhado de palha encharcada de sangue e coberta com couro gasto. Alguém teve o fim ali mesmo e, pelo visto, quem removeu o corpo não teve estômago para recolher o que escapou das entranhas. Espantou as moscas, abaixou e cheirou os restos pútridos como cão. Cuspiu novamente.
Ainda agachado, moveu-se apoiado nas mãos. O chão úmido e frio de pedra gelava as pontas dos dedos. Parou ao lado da cama menor onde dormiam as crianças. Porções de órgãos e pele se agarravam na palha.
“Lembra um ninho de passarinhos devorados por ratazanas.”
“Seja o que for, os atacou antes de despertarem”, ponderou o Estranho.
Abandonando a carnificina, voltou sua atenção para a porta de entrada. Puxou-a e a trancou por dentro; em seguida abriu uma janela estreita na parede oposta. A luz opaca do início da manhã reluziu no trinco de metal, a peça retangular havia se dobrado e arqueado para trás. Logo acima, manchas avermelhadas tomavam o centro da porta e respingos de sangue salpicavam o arredor.
“Quem fez isso golpeou a porta até o trinco ceder.”
“Arrombada de dentro para fora”, concluiu suspeitando que não fosse mesmo uma fera, não do mundo dos vivos. De todas as maldições, há poucas mais cruéis com o afligido. Se ainda lembrasse do que é piedade, teria alguma pela alma atormentada.
Um som de galope se aproximando interrompeu a inspeção.
“Você tem visita.”
O Estranho correu e se espremeu através da janela caindo do lado de fora. Se apressou até a extremidade da cabana, a tempo de espiar o visitante desmontando. Era um homem alto e forte. O lado esquerdo do rosto não tinha orelha e era retalhado por várias cicatrizes, como se tivesse sido mastigado por uma mandíbula gigante e feroz. Carregava um arco, além de um machado de cabo curto e uma espada presa no cavalo.
“Um caçador”, pensou o Estranho.
O homem amarrou o cavalo em um tronco e se dirigiu para a cabana.
Quando a porta rangeu, o Estranho já havia voltado até a janela. Abriu um sorriso satisfeito ao ver o homem seguir exatamente os mesmos passos que fizera momentos antes, demorando um pouco mais observando a porta arrombada.
“O que ele procura?”, sussurrei. “Dinheiro? Fama? Ou talvez só goste de matar, como você.”
“Eu não gosto de matar”, retrucou o Estranho voltando sua atenção para o caçador, que deixava a cabana.
Com o arco preso nas costas e o machado em mãos, o caçador se embrenhou pelas árvores rumo ao norte. O Estranho aguardou até que saísse de seu campo de visão, deu a volta até a entrada da cabana e observou o terreno em frente à porta: não havia sinal de pegadas, o que reduzia a lista de aberrações.
Tanto os fundos da cabana, virado para leste, como sua lateral, a norte, faziam divisa com uma floresta densa. Farejou o ar. Mesmo ali fora ainda sentia o fedor. O vento soprava do leste, agitando a plantação seca e estéril à frente da cabana, assim soube qual direção tomar e alcançou o punhal na cintura.
“Vai precisar de algo maior dessa vez”, sussurrei.
Após suspirar relutante, o Estranho arrancou a espada embainhada na cela do cavalo e partiu.
Com passos calmos e olhar atento, embrenhou-se pela floresta cada vez mais fechada. De tempo em tempo voltava a atenção para a copa das árvores. Na ausência do sinal procurado, o fedor cada vez mais intenso o guiava. Apenas o farfalhar das folhas e galhos acompanhavam seus passos. Com exceção de alguns pássaros, a vida havia abandonado aqueles ermos.
Em certo trecho, o terreno se tornou pantanoso e difícil: a neve, quase derretida, encharcava as botas, e o frio subia pelas pernas gelando até os ossos. Após algumas horas mata adentro, enfim localizou o rastro de galhos quebrados na copa das árvores. Seguiu na direção da trilha. Atravessou um riacho parcialmente congelado – onde apenas um fio de água talhava seu caminho. Continuou sem descanso até o sol passar do meio-dia.
Prestes a desistir e dar meia volta, encontrou os sinais daquela maldição.
“Você já viu algo assim”, murmurei em seu ouvido. “É difícil esquecer desse cheiro.”
Os restos retorcidos pareciam couro de uma serpente do tamanho de um homem e fediam a pele queimada. Abaixado, o Estranho ergueu uma porção com um graveto e a membrana quase se desmanchou. Ainda com o graveto, revirou com cuidado e notou alguns trapos de tecido misturados aos restos.
De pé, observou os arredores: rastros deixavam o monte fedorento. Não eram marcas claras, devido ao chão encharcado e forrado de folhas, mas em alguns pontos eram visíveis pegadas de um homem adulto descalço. Pelo espaçamento entre as pegadas, deve ter despertado e saído correndo, desorientado.
Seja quem for, ao menos teve sorte de ter escapado da cabana durante a noite. O Estranho nunca teve filhos ou companheira, mas imaginou a dor insuportável caso o amaldiçoado acordasse e contemplasse os corpos mutilados da própria família.
A pior parte dessa maldição.
Não é como um desmaio, ou sono profundo, na verdade a consciência não dorme. Cada segundo de violência, o sangue doce, a sensação das garras enterrando na carne, tudo era sentido vividamente. Como uma prisão dentro de si mesmo.
O Estranho seguiu as pegadas até um movimento entre as árvores o paralisar. “O caçador?”, pensou ele pouco antes de ouvir um gemido baixo, como alguém chorando de boca fechada. Prosseguiu com cuidado na direção do lamento e encontrou seu dono em uma clareira, abraçado às próprias pernas e deitado em posição fetal. O corpo nu coberto de manchas escuras. Em alguns pontos, algo gelatinoso se agarrava na pele como restos de uma placenta pútrida.
“O desespero é a morte da esperança.”
Aquele homem era um Penitente, a marca da rosa na mesa deixava isso claro. Penitentes buscam a Graça, uma bênção que lhes garante a vida eterna em Expiação. Porém essa suposta bênção não passa de uma maldição. Um pacto sem palavras. Silencioso, cruel e sombrio.
Ele recebeu sua Graça, e teve seu desejo atendido. De forma distorcida e macabra.
A floresta mergulhava aos poucos na penumbra.
Com a espada em mãos, o Estranho se acomodou encostado no tronco de uma árvore e fixou os olhos no homem. Quando notou uma silhueta se esgueirando por entre as árvores, já era tarde. Levantou com um salto vendo o caçador se aproximar do outro lado da clareira, ambos à mesma distância do homem caído.
“Você está ficando velho”, provoquei.
O caçador tinha em sua vantagem o impulso de estar em movimento, assim alcançou primeiro seu alvo. Prestes a descer o machado sobre a cabeça do infeliz, o Estranho interveio:
— Não! Vai se arrepender se fizer isso.
Em resposta, o caçador o encarou mantendo a arma no alto:
— Esse homem assassinou a própria família — disse, puxando o machado para continuar o movimento de execução.
A interrupção deu tempo para que o Estranho o alcançasse e aparasse a trajetória do golpe desferido pelo caçador, que reconheceu sua própria espada e sorriu:
— Além de comparsa desse infeliz, também é ladrão?
— Acredite, isso é um favor.
Enquanto ambos se estudavam – com as armas cruzadas – o homem deitado passou a convulsionar e gritar como louco, atraindo o olhar assustado do caçador.
A distração abriu uma brecha.
O Estranho chutou a perna do caçador e girou o braço dando uma cotovelada no rosto dele. Caído e atordoado, o caçador não conseguiu evitar que o Estranho agarrasse o cabo do machado e o desarmasse.
— Ele é um amaldiçoado — afirmou o Estranho apontando com o machado para o homem em convulsão. — Se o matasse antes de se transformar, teria tomado para si a maldição.
Os gritos do homem caído se intensificaram. Sem aviso, um par de asas de morcego brotaram de suas costas, rasgando a carne e respingando sangue na roupa e rosto do caçador. Puxado pelo Estranho, ele se colocou de pé e aceitou de volta o machado.
— Preste atenção, vou segurar a criatura. — O Estranho deu a volta por trás do ser em transformação. — Quando tentar voar, você acerta com toda força, entendeu?
O caçador assentiu com a cabeça, depois pareceu murmurar uma oração silenciosa. Humanos são engraçados: se soubessem que nada ou ninguém ouvia suas súplicas, restaria apenas o medo.
A pele do homem começou a se partir, como se uma infecção estivesse eclodindo de dentro para fora. A carne avermelhada pulsante escureceu, parecendo apodrecer. Pontas ossudas rasgaram os dedos, transformando as mãos em garras. A boca virou um focinho. Um par de presas nasceram e os olhos se tornaram amarelos vibrantes. Em um instante, aquilo se levantou e girou as garras no ar tentando acertar os dois homens que o cercavam. Depois, bateu as enormes asas fazendo soprar um vento gélido.
— Agora! — O Estranho correu e se agarrou na cintura da criatura que alçava voo.
O caçador ergueu o machado e saltou, desceu a arma no ar, cravando a lâmina afiada nas costas da coisa, que emitiu um guinchado estridente. De imediato o Estranho a soltou, ela decolou alguns metros no ar e caiu em espasmos.
Na tentativa de remover a arma cravada nas costas, a criatura se esfregava e se debatia contra o chão. O caçador se aproximou, pisou em uma das asas e removeu o machado ao som dos estalos de ossos partindo. Então desceu a lâmina contra a cabeça, abrindo o crânio e colocando fim ao tormento daquele condenado.
— Como você sabia? — perguntou ainda extasiado pela adrenalina.
Na ausência de uma resposta, olhou para trás, mas não havia ninguém, somente sua espada repousava no chão.
Esse conto também foi maravilhoso!! Mas na minha opinião, ainda não superou o primeiro capitulo